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Com TJ-BA atuando com pioneirismo, constelação familiar ainda é tema de debate na comunidade jurídica

Um meio alternativo para as soluções de conflitos no judiciário, de forma mais harmoniosa, e a consequente diminuição do número de processos judiciais em trâmite no país. Sob essa chancela, Tribunais de Justiça brasileiros têm utilizado a técnica da constelação familiar, criada pelo alemão Bert Hellinger (1925-2019), e dado autonomia para magistrados fazerem uso do método que tem levantado questionamentos e debates nas áreas do direito e da saúde. 

 

Mas o que é a constelação? A Associação Brasileira de Consteladores (ABC) define a prática como uma abordagem sistêmica fenomenológica, útil em situações de dificuldades nas várias áreas da vida: familiares, sintomas físicos, emocionais, mentais, relacionais e profissionais. A prática, no entanto, não possui base científica.

 

Como traz o relatório do Instituto Questão de Ciência (IQC), na visão de Hellinger, as relações familiares seriam regidas por três leis, as chamadas “Ordens do Amor”: a lei do pertencimento, a lei da hierarquia e a lei do equilíbrio. 

 

A lei do pertencimento indica que é inerente ao ser humano a necessidade de pertencer a um grupo e uma vez que tenha pertencido ao sistema familiar, não pode ser excluído independente do que faça; a lei da hierarquia diz que há membros do sistema familiar hierarquicamente superiores aos demais, seja pelo “tempo” (os que vieram antes deveriam ser seguidos pelos que vieram depois) ou pela “importância” (o marido é considerado mais importante que a esposa em um casamento, por isso ela deveria segui-lo); e a lei do equilíbrio entre o dar e o receber significa que, nas relações entre membros de um sistema familiar, tudo o que é dado por um deles precisaria ser recompensado pelo outro. 

 

Nesta perspectiva, toda família seria regida por uma espécie de consciência coletiva que registraria quando uma dessas leis é desobedecida e puniria um membro da família para que a ordem quebrada fosse restabelecida. Bert Hellinger argumenta que todos os seres humanos sofreriam essa influência, mesmo sem perceber, e que nossas ações não seriam tão livres e independentes como se acredita.

 

O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) é considerado pela comunidade de praticante como pioneiro no uso da constelação familiar entre as Cortes brasileiras. O primeiro magistrado a aplicar a técnica é o juiz titular da 2ª Vara da Família da comarca de Itabuna, Sami Storch, que teria iniciado as primeiras experiências de constelação familiar com processos judiciais em 2012 – seis anos após ingressar na magistratura.

 

O TJ-BA possui, inclusive, uma regulamentação própria que autoriza o uso das constelações familiares nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos (CEJUSCs). O decreto judiciário nº 467, de 19 de julho de 2021, institui o guia de competências dos CEJUSCs e já no artigo 1º estabelece: “além das atividades de conciliação e mediação, os CEJUSCs poderão oferecer outros serviços relativos ao tratamento adequado de conflitos de interesse, a exemplo das práticas restaurativas e das constelações familiares”.

 

“A Constelação Familiar é utilizada no Judiciário como um método facilitador da solução consensual de conflitos, com participação livre e voluntária, conforme autorizado no artigo 3º, § 3º, do Código de Processo Civil, que determina que tais métodos ‘deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial'”, diz Storch em entrevista ao Bahia Notícias.

 

Por meio da assessoria de comunicação do TJ-BA, o juiz Sami Storch indica uma estimativa da participação de aproximadamente 150 pessoas nas vivências de constelação em 2023. O magistrado diz já ter colocado em prática a técnica, com a participação das partes envolvidas nos processos, também em Amargosa, Castro Alves, Lauro de Freitas e Valença, além de Itabuna. 

 

Juiz Sami Storch | Foto: TJ-BA

 

As atividades no tribunal baiano contam com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia (OAB-BA). Em nota enviada ao BN, a OAB-BA enfatiza o pioneirismo no uso de constelações familiares pelo tribunal, iniciado há mais de 10 anos, o alinhamento com a Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o uso da técnica pela Justiça de 16 estados e do Distrito Federal. 

 

Com isso, a OAB da Bahia criou no triênio 2019-2021 a Comissão de Direito Sistêmico, reeditada no triênio 2022-2024. A comissão é presidida pela advogada Karla Menezes e, segundo a Ordem, realiza estudos sobre a prática, além de encontros no auditório da sede da seccional.

 

Karla Menezes, presidente da Comissão de Direito Sistêmico da OAB-BA | Foto: Arquivo pessoal

 

Ao BN, Menezes indica que a constelação familiar tem sido utilizada em casos de divórcio, inventários, disputas societárias e processos trabalhistas, por exemplo. “Processos judiciais somente existem porque pessoas existem. Toda ação judicial tem parte autora, uma no mínimo, e outra ré, uma no mínimo. Pessoas físicas são pessoas, indivíduos. Pessoas jurídicas são duas ou mais pessoas unidas para a realização de um serviço. Logo, sempre é sobre pessoas e são as pessoas que são consteladas. Eu uso as leis sistêmicas para identificar as distorções ou disfuncionalidades nas relações entre as pessoas que estão envolvidas no conflito do cliente que vem a mim e ofereço a técnica da Constelação Familiar para apoiar na obtenção de soluções, pois permite ver o ponto cego, a causa-raiz do problema”, explica. 

 

Embora haja o discurso favorável e até a regulamentação própria para uso da constelação familiar no sistema de Justiça, como no caso do TJ-BA, a técnica é tida como controversa e questionada também por profissionais de saúde. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) é contrário ao uso da constelação por psicólogos. 

 

Na nota técnica emitida em março de 2023, o CPF aponta ser inadequado o uso das constelações por profissionais da psicologia no âmbito da Justiça, em especial em casos de violência. A entidade afirma que a exposição de mulheres em situação de violência a estes procedimentos e técnicas pode expô-las a situações de risco, insegurança e de revitimização.

 

“Denota-se, nestes casos, que não há uma situação de igualdade entre vítima e agressor, com vistas a um diálogo e ao estabelecimento de um acordo. A técnica, neste contexto, acaba por mobilizar a vítima para um acordo em uma situação adversa e de fragilidade, o que não seria realizado em outras condições”, destaca o Conselho. 

 

O Conselho Federal de Psicologia ainda diz que a defesa da constelação familiar no judiciário concentra o debate na pacificação de conflitos, retirando o foco da violência doméstica como consequência da desigualdade estrutural de gênero no Brasil. “Um debate complexo, relacionado a questões sociais, históricas, culturais e econômicas, passa a ser reduzido a um conflito individual”, aponta o CFP na nota técnica. 

 

Sendo assim, a entidade ressalta que a aplicação da técnica no sistema de Justiça é entendida por diversos movimentos de defesa dos direitos das mulheres como um retrocesso; indo, também, na contramão da Lei Maria da Penha, “uma vez que a lógica de proteção das famílias invisibiliza a violência doméstica e silencia as mulheres vítimas de violência”. 

 

“A técnica, neste contexto, acaba por mobilizar a vítima para um acordo em uma situação adversa e de fragilidade, busca a pacificação de conflitos, retirando, contudo, o foco da violência doméstica como consequência da desigualdade estrutural de gênero. Assim, um debate complexo, relacionado a questões sociais, históricas, culturais e econômicas, passa a ser reduzido a um conflito individual, o que faz com que a aplicação dessa técnica no Sistema de Justiça seja entendida, por diversos movimentos de defesa dos direitos das mulheres e pelo CRP-03, como um retrocesso”, argumenta a Comissão de Fiscalização e Orientação do Conselho Regional de Psicologia da Bahia – CFP-03.

 

O Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), em 2022, realizado sob pelo CNJ, orientou, por meio do Enunciado 67, que “no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher não sejam utilizadas práticas de constelação familiar”. Além disso, em 2023, o CNJ adicionou, na seção “Conciliação e Mediação” do seu site, a aba “Constelação Familiar – Nota Técnica do Conselho Federal de Psicologia”, remetendo à referida nota técnica.

 

Esses argumentos quanto ao reforço dos papéis de gênero, machismo e misoginia, a presidente da comissão da OAB-BA, rebate. “Para mim, a Constelação Familiar não reforça o machismo ou a misoginia. A Constelação Familiar é uma técnica. Pessoas que a usam podem sim ser machistas e misóginas, infelizmente, da mesma maneira que na estrutura de Poder Judiciário e na estrutura dos próprios Conselhos de Medicina ou de Psicologia pode haver pessoas que agem sob posturas machistas ou misóginos”, defende Karla Menezes. 

 

Na outra ponta, Sami Storch classifica como “polêmica”, “genérica e sem menção a nenhum caso específico” a nota técnica do CFP, além de apontar uma “validade questionável” pelo fato do documento não ter sido subscrito por “qualquer especialista”. 

 

“É muito estranho que nos ataques e críticas às constelações sejam mencionados fatos tão graves, mas que não se aponte concretamente quais são as pessoas envolvidas, os atos efetivamente praticados e os danos reais verificados. Cabe questionar aos que criticam se conhecem, de fato, as práticas das quais estão falando, e se as denúncias vagas que propagam foram apresentadas e apuradas nos órgãos competentes (polícia, Judiciário, corregedorias, órgãos profissionais)”, indaga o juiz. 

 

Segundo o titular da 2ª Vara da Família de Itabuna, ao longo desses 12 anos utilizando a constelação familiar no judiciário baiano pôde perceber o “alto nível de satisfação” entre os participantes e seus advogados; “expressivo” aumento dos índices de conciliação e redução da rejudicialização (recursos, ações de execução, descumprimento de decisões e novos processos entre as mesmas partes), incluindo queda na reincidência criminal e infracional. 

 

“Alguns casos chamaram especial atenção da comunidade e dos advogados, como efetiva melhora no comportamento social de pessoas conhecidas pela prática habitual de crimes e conciliações entre pessoas que há anos travavam litígios em dezenas de processos, pondo fim a todos eles”, assegura Storch.

 

O juiz diz que as críticas surgidas nos últimos anos apontam para “supostos perigos” inexistentes nas práticas utilizadas e desconsideram a “real percepção da comunidade beneficiada pelo projeto”. No entendimento de Sami Storch, “as constelações não propõem dogmas ou obrigatoriedades, e sim oferecem, aos que o quiserem, uma visão ampliada das dinâmicas causadoras do conflito e da solução possível para que cada um se fortaleça e se liberte do ciclo da violência”. “Aos que preferirem os métodos tradicionais, que se os mantenham, na forma da lei. Sua efetividade já é conhecida”.  

 

O magistrado do TJ-BA ainda destaca que os advogados, a Defensoria Pública e o Ministério Público são sempre convidados a participar das audiências e julgamentos, quando há o uso da constelação, “como responsáveis pela garantia e defesa dos direitos de seus clientes”. “Isso garante a segurança de que, caso haja algum prejuízo ou violação a direito de quem quer que seja, haverá profissionais habilitados a assegurar os direitos de cada um”.

 

CONSTELAÇÃO x CNJ
A Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas pleiteia junto ao CNJ a regulamentação da prática no judiciário brasileiro. Na sessão do Conselho Nacional de Justiça do dia 17 de outubro de 2023, o órgão deu início à análise do pedido da ABC. 

 

O relator da ação, o conselheiro Marcio Luiz Coelho de Freitas, se posicionou contrário à adoção da constelação familiar como política pública no âmbito da Justiça. “A utilização desse tipo de prática, que tem um estereótipo de família que é absolutamente misógino, marcada por dogmas e lei imutáveis, e que não estão sujeitas a falibilidade da ciência, isso é algo que não pode ser adotado no Poder Judiciário”, afirmou Freitas na sessão.

 

Conselheiro Marcio Luiz Coelho de Freitas | Foto: Rômulo Serpa/CNJ

 

Em seu voto, ele não sugeriu que os procedimentos alternativos de resolução de conflitos, a exemplo da constelação familiar, sejam proibidos. Freitas propôs restrições e maior rigor na aplicação de tais métodos no judiciário, como a necessidade de uma avaliação por equipe especializada que assegure o consentimento livre e esclarecido da vítima de violência para o encaminhamento a qualquer tipo de procedimento alternativo. 

 

O conselheiro ainda propôs que, para um magistrado usar a constelação familiar, é preciso atender a alguns requisitos: a inexistência de indicadores de que a técnica deverá acarretar em novos riscos para a vítima e seus familiares; e que os profissionais que aplicaram a técnica deverão ser especialmente capacitados para compreender e intervir adequadamente nos casos de violência contra as mulheres. Tudo para evitar a revitimização de pessoas envolvidas nos processos. 

 

No entanto, o julgamento do pedido foi suspenso após pedido de vista – para mais tempo de análise – por parte da conselheira Salise Sanchotene.

Fonte: Bahia Notícias