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Jacaré: a voz para lembrar que o povo também manda
Personagem
Acervo de A TARDE testemunha atuação de figura folclórica que fazia comício na base do caixote
O professor Ubiratan Castro de Araújo (1948-2013) era doutor em história pela Universidade de Paris IV- a Sorbonne. Era especialista em economia da escravidão e escrevia de uma forma encantadora. Não à toa se tornou membro da Academia de Letras da Bahia em 2004. O livro de crônicas, “Sete histórias de negro”, de sua autoria, é um delicioso passeio sobre memórias da vida cotidiana do povo de Salvador e do recôncavo e, como não poderia deixar de ser, com várias referências bem humoradas a amigos seus como o doutor em antropologia Roberto Albergaria (1954-2015). Pois foi o professor Ubiratan quem me falou pela primeira vez de Jacaré em uma entrevista para apresentar seu planos de administração para a Fundação Pedro Calmon, que assumiu em 2007 depois de deixar a Fundação Cultural Palmares, então órgão do extinto Ministério da Cultura, onde fez um brilhante trabalho, inclusive trazendo para Salvador, um ano antes, a II Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora (II CIAD).
A Fundação Pedro Calmon cuida da memória documental do governo da Bahia, do sistema de bibliotecas e arquivos e também dos programas de leitura. Naquela época, a instituição estava sediada no Palácio Rio Branco e por isso Jacaré foi citado na entrevista:
“Jacaré era um cidadão que tomava cachaça e depois subia num caixote para fazer comício. Falo isso pensando em ter um lugar onde o povo possa se exprimir do seu jeito, dizer o que pensa. Por que isso não pode acontecer aqui na Praça Municipal? O cidadão chega aqui, abre a boca e diz o que ele pensa. Alguns vão gostar, outros não vão” (Ubiratan Castro de Araújo, A TARDE, 29/1/2007, Salvador, p.10).
Jacaré voltou a ser citado pelo professor Ubiratan na reportagem “Pra se embolar de tanto rir”, assinada pela jornalista Fabiana Mascarenhas e publicada em 29 de março de 2008, em um especial sobre o aniversário de Salvador. Nesse texto já há mais detalhes sobre ele: Jacaré usava para os seus discursos uma cadeira ou um estrado de madeira no modelo dos que são usados para acondicionar frutas em mercados. Não se sabe seu nome verdadeiro. A alcunha, de acordo com o professor, vinha de uma aguardente.
E Mangabeira deu espaço a Anísio Teixeira
A história mais repetida sobre Jacaré envolve o governador Octávio Mangabeira (1886-1960). Engenheiro, Mangabeira foi o primeiro governador eleito após o Estado Novo de Vargas, que fez a Bahia passar por sucessivas intervenções federais. Mangabeira tomou posse em 1947 e assumiu um estado com problemas graves em praticamente todas as áreas. Uma das piores era do âmbito da urbanização na capital. A cidade tinha passado por uma explosão populacional devido aos latifúndios por todo o interior do estado. Tornou mais agudo o problema das ocupações irregulares, como o Corta Braço, no bairro da Liberdade, segundo a narrativa do historiador Luiz Henrique Dias Tavares (1926- 2020) em seu clássico História da Bahia.
Mas o governo de Mangabeira, que foi até 1951, ficaria marcado especialmente por ter à frente da Secretaria de Educação e Saúde o professor Anísio Teixeira. Em um ano de governo estavam sendo construídos 258 novos prédios escolares. Segundo Mangabeira, essa pasta estaria acima de qualquer interesse político ou de compromissos eleitorais.
Na gestão de Anísio Teixeira surgiram os centros educacionais integrados nas escolas classe ou escolas parque. Foi a era dos ginásios e colégios secundários com instalações mais modernas e um corpo docente selecionado em concursos com provas de títulos. Alguns dos professores estavam saindo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da recém criada Universidade Federal da Bahia (UFBA). Além disso, Anísio Teixeira criou um Departamento de Cultura na Secretaria de Educação, o que impulsionou incentivo às variadas linguagens artísticas: teatro, artes plásticas, dentre outras.
Mas Mangabeira também tinha problemas políticos sérios. Em sua gestão ocorreu o empastelamento do jornal O Momento, ou seja, a liberdade de expressão continuava em risco. Em 28 de fevereiro de 1948 um comício de protesto contra a cassação de membros do Partido Comunista que tinha cargos legislativos pelo Brasil acabou em tragédia: a morte de um jovem bancário e ferimentos no deputado Giocondo Dias, além de prisões arbitrárias de jornalistas, estudantes e funcionários públicos. O governador providenciou a libertação dos presos, no dia seguinte, mas o desgaste estava posto.
Mangabeira atende Jacaré
Octávio Mangabeira costuma também ser muito lembrado pela frase que lhe foi atribuída: “Pense em uma coisa impossível. Na Bahia já houve um precedente”. E Jacaré pode ter sido um desses, pois, um dia, também segundo a narrativa do professor Ubiratan, ele, do alto de uma cadeira gritava, possivelmente na direção do Palácio Rio Branco:
– Governador, governador. Apareça e fale com o povo.
Lá veio, finalmente, Octávio Mangabeira saber o que Jacaré queria ao que ele retrucou:
– Vossa Excelência governa a Bahia com muitcha delicadeza.
O que Octávio Mangabeira fez não sabemos. Mas essa imagem que está na pasta da documentação do Cedoc sobre Mangabeira mostra que ele parecia levar, como se diz por aí, “de boa”, as interpelações de Jacaré, mesmo em dia de altas solenidades. Segundo uma anotação no verso da imagem, o registro é do dia em que Octavio Mangabeira está encerrando seu mandato como governador da Bahia.
Jacaré, portanto, parecia estar bem à vontade não apenas em sua praça, mas também nos espaços de poder. Talvez, bem ciente da máxima- utópica ou não- de que todo poder emana do povo. E tem juízo o político que entende bem isso. Ao menos costumava ser assim.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
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–> Fonte: A Tarde
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