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Impasse sobre monumento de Mário Cravo em Salvador gera debate sobre direito autoral

Os soteropolitanos têm acompanhado há meses uma briga que envolve familiares de Mário Cravo Júnior e a prefeitura municipal, a respeito da reconstrução do “Monumento à Cidade de Salvador” ou “Monumento Fonte da Rampa do Mercado”, obra do artista plástico baiano que foi incendiada no fim de 2019, no bairro do Comércio. O impasse se dá porque um dos herdeiros cobra os direitos autorais para liberar a restauração da escultura, enquanto o restante da família cedeu o que lhe cabe.

 

Em um gesto otimista, em setembro, o presidente da Fundação Gregório de Mattos (FGM), Fernando Guerreiro, chegou dar por solucionado o imbróglio e prever a conclusão da obra até meados de 2021 (clique aqui). Acontece que a advogada que representa Ivan Cravo, filho de Mário que pleiteia o pagamento dos direitos, negou que tivesse sido fechado um acordo com a prefeitura de Salvador (saiba mais). 

 

Diante do quadro, há cerca de uma semana o prefeito ACM Neto, que já havia cogitado substituir a escultura por uma obra de outro artista, caso não houvesse um consenso (clique aqui), deu um ultimato. Durante entrevista coletiva, ele colocou um prazo até o fim deste mês para chegar a uma solução definitiva, junto com Guerreiro. “A Procuradoria do Município compreende que não precisamos de autorização da família para reconstruir o monumento. Se esse entendimento ficar pacificado do ponto de vista jurídico, vamos começar a reconstrução. Se não ficar pacificado, eu já tenho ideia do que fazer e vamos anunciar no início de novembro o que iremos colocar no lugar do monumento de Mário Cravo”, declarou o prefeito (relembre).

 

Assinado pelo procurador Rodrigo Moraes Ferreira, o parecer apontado por Neto para liberar a obra foi apresentado a Ivan Cravo e sua advogada, Cristina Ruas, na última sexta-feira (9), durante reunião na FGM. O encontro, mais uma vez, acabou sem um acordo. O documento em questão foi elaborado a pedido de Fernando Guerreiro e da diretora de Patrimônio e Humanidades da FGM, Milena Tavares, no âmbito do processo administrativo de número 405/2020, que visa consultar a procedência ou não da cobrança dos direitos autorais.

 

“Monumento Fonte da Rampa do Mercado, de 1970, de Mário Cravo Jr.: Direito-dever do município do Salvador de recomposição. Inexistência de obrigação de pagamento de direitos autorais a herdeiros do falecido artista plástico. Obra em domínio público”, diz a ementa do parecer apresentado pela Procuradoria Geral do Município (PGM). 

“A lei citada pela Prefeitura está revogada, é de 1916, nem o artista era nascido. Os Direitos Autorais são pagos aos Herdeiros vivos conforme dispõe o Art.41 da Lei n.9610/98, uma vez que o artista faleceu em 2018. Não há dúvidas, para entrar em domínio público faltam 68 anos. A lei é clara, o prazo se inicia da morte do autor, ou seja, 2018”, defende Cristina Ruas, advogada de Ivan Cravo, reiterando que a prefeitura necessita do aval dos herdeiros para tocar a reconstrução. “Se a obra fosse de domínio público, não precisaria, mas não é o caso”, pontua.

 

No documento, a PGM destaca a importância do monumento, feito sob encomenda pela prefeitura durante a gestão do então prefeito Antônio Carlos Magalhães e tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultura da Bahia (Ipac) em 2020. “Percebe-se que o monumento Fonte da Rampa do Mercado é uma obra memorável, que integra a paisagem urbana da Cidade do Salvador, cenário paisagístico da Cidade Baixa. A arte escultórica de autor Mário Cravo Jr. merece, pois, ser valorizada. E é exatamente isso que pretende o Município de Salvador”, diz o texto.

 

Na fundamentação jurídica, a procuradoria defende que a prefeitura “tem o direito-dever” de seguir com a reconstrução e afirma que o direito moral à integridade da obra já estava previsto tacitamente, no Código Civil de 1916 e, atualmente, encontra-se disposto no art. 24, IV, da Lei 9.610/98. Citando o artigo 24, a PGM afirma que são direitos morais do autor “assegurar a integridade da obra, opondo-se a qualquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-lo ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra” e que “compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público”. Diante do exposto, o órgão afirma que o município “quer cumprir fielmente esse dispositivo” e “zelar pela integridade e autoria da obra”, que em sua análise, caiu em domínio público.

 

Para defender este ponto, o texto lembra que o Código Civil que regia em 1970, quando foi celebrado o contrato entre Mário Cravo e a prefeitura, era o de 1916, e, portanto, valem as regras da época. “Art. 661. Pertencem à União, aos estados ou Municípios: II – As obras encomendadas pelos respectivos governos, e publicadas à custa dos cofres públicos”, pontuou, citando a legislação da época, e lembrando que o monumento foi encomendado e pago pela prefeitura. “Portanto, o saudoso artista plástico Mário Cravo Jr. foi, naquela época, devidamente remunerado pelos cofres públicos, ou seja, pelos munícipes soteropolitanos. O artista plástico não trabalhou de maneira graciosa para a concepção da obra, mas, sem dúvida alguma, de maneira onerosa”, argumentou. Para concluir seu ponto, a PGM afirmou que a legislação da época não considerava “ofensa aos direitos do autor” a “reprodução de obras de arte existentes em logradouros públicos”. Defendeu ainda que “o art. 662 do Código Civil de 1916 rezava que obras publicadas pelo Governo Municipal caíam em domínio público anos depois da publicação”, e não após 70 anos da morte do autor, como prevê a lei atual.

 

“Portanto, forçoso é reconhecer que, em 1970, a municipalidade tornou-se titular dos direitos patrimoniais da obra Fonte da Rampa do Mercado. Sendo assim, é incorreto afirmar que a vigente Lei 9.610/98 retroagiria para 1970. Ora, é preciso, in casu, ser aplicado o princípio da irretroatividade das leis civis. A transmissão dos direitos patrimoniais de autor para a municipalidade, ocorrida em 1970, sob império do Código Civil de 1916, não pode ser olvidada. Tampouco pode ser esquecido o fato de que a obra Fonte da Rampa do Mercado já se encontra, inelutavelmente, em domínio público, tendo em vista que já transcorreu o prazo de 15 anos previsto tanto no art. 662 do Código Civil de 1916 quanto do art. 46 da revogada Lei Autoral (Lei 9.610/98)”, conclui a Procuradoria.

 

O parecer levanta também a tese de abuso de direito em decorrência de “violação ao princípio de boa-fé” por parte do herdeiro que pleiteia o pagamento dos direitos autorais. “Ainda que se considere que a obra Fonte da Rampa do Mercado não esteja em domínio público ou que Município do Salvador nunca tenha sido titular dos direitos patrimoniais – suposições hipotéticas apenas para o debate jurídico -, seria plenamente cabível ser arguida a proibição ao comportamento contraditório. O autor Mário Cravo Jr., em vida, não cobrou direitos autorais para recomposição de dois monumentos de sua autoria, mas um de seus herdeiros, de maneira incoerente, com a devida vênia, vai de encontro ao comportamento manifestado em vida pelo seu genitor”, diz o texto, que faz referência ao restauro da própria escultura, em 2001, e de outra obra do artista, o monumento em homenagem a Clériston Andrade em 2013, ambos com supervisão de Mário, sem qualquer cobrança. “O herdeiro mais velho de Mário Cravo Jr. deve se comportar como guardião da memória do falecido pai, tendo o dever de respeitar as intenções expressas ou tácitas do saudoso artista plástico baiano. Para o exercício do direito moral post mortem, faz-se necessário um dever de fidelidade dos sucessores ao autor falecido”, defende a PGM, segundo a qual o herdeiro “age, com a devida vênia, com abuso de direito” ao cobrar R$ 1 milhão a título de direitos autorais. Ele reitera ainda que o monumento já se encontra em domínio público e por isso “ainda que o valor cobrado pelo herdeiro fosse ínfimo, não seria cabível a cobrança”. “Caso a obra não estivesse em domínio público – o que se admite apenas por amor ao debate -, o valor cobrado certamente seria considerado abusivo pelo Poder Judiciário”, avalia.

 

Monumento a Clériston Andrade pegou fogo em 2013 e foi restaurado pela prefeitura (clique aqui e aqui e relembre) | Foto: Max Haack / Agecom

 

 

O documento versa ainda sobre a proposta de realização de um concurso público para a criação de outra obra para o local onde estava instalado o monumento de Mário Cravo. “Não concordamos com essa proposta do ilustre arquiteto e professor Nivaldo Vieira de Andrade Júnior. Pensamos que essa opção somente seria recomendável se fosse impossível a recomposição da obra de arte plástica. In casu, todavia, é perfeitamente possível e, também, lícita a recomposição da obra (sem necessidade de pagamento de direitos autorais a herdeiros do falecido autor, tendo em vista que a obra encontra-se em domínio público”, diz o texto.

 

Também para fundamentar sua argumentação, a procuradoria afirma que a prefeitura “irá respeitar fielmente a integridade do corpus mysticum, ou seja, não fará modificações na obra intelectual do artista Mário Cravo Jr” e que, inclusive, o processo de reconstrução será conduzido junto um dos herdeiros do autor. “Tanto que a Fundação Gregório de Matos vem estabelecendo diálogo com Otávio Cravo, um dos filhos do falecido autor, para o serviço de recomposição do monumento, tendo em vista que ele participou da restauração realizada em 2001. A recomposição da obra, portanto, visa a assegurar a integridade da obra de Mário Cravo Jr., e prestigiar a memória desse importante artista plástico baiano”, pontua o texto, que cita a Constituição Federal de 1988 para apontar como competência dos entes federativos, inclusive municípios, proteger e “impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”.

 

Especialista em direito autoral, a advogada Alice Dantas explica que o caso não é simples, assim como todos os demais relacionados ao tema. “O que posso dizer é o seguinte: direitos autorais e patrimoniais sobre obras plásticas são matéria eminentemente regida sempre por contrato. Então, você tem que observar as disposições do contrato e, ao mesmo tempo, a lei que era vigente na época que ele foi assinado”, diz a advogada. “É preciso observar qual é a lei que vigia, qual é o retrato que a gente vai tirar daquele momento que foi assinado o contrato. Então, não é pacifico, não é uma resposta de dois mais dois é igual a quatro. Vai depender muito de interpretação, de ver as disposições do contrato, é um negócio complexo pra dizer sem olhar documento”, pondera.

 

Segundo Dantas, os direitos autorais no Brasil primeiro eram regidos por uma lei de 1898 e, em 1916, entrou em vigência do Código Civil citado pelo parecer da PGM. “Apenas em 1973 veio uma lei específica de direitos autorais. Então, antes disso, a lei de 1898 regulava algumas coisas, mas era muito esparsa, era muito pouco o que tinha e não era tão abrangente. Então veio a lei de 1973 de direitos autorais e vigorou até 1998, quando foi alterada novamente”, situa a advogada, que cita também o princípio de Tempus regit actum, apontado pela procuradoria. Este dispositivo do direito civil determina que qualquer transação feita é regida pela lei em vigor na época. “Eu não estou fazendo juízo de valor ou opinando se estou do lado da prefeitura ou da família, estou dizendo que a regra é essa. Se você tem um contrato, você vai observar naquele momento que foi assinado qual era a lei vigente, seja ela revogada ou não, esteja a pessoa viva ou não”, explica. “A advogada de Mário Cravo diz que é uma lei de 1916, anterior à existência de Mário Cravo. Só que essa lei de 1916, ela goste ou não goste, estava vigente até 2002, pelo Código Civil. Então, tudo que foi feito entre 1916 e 2002 é no mesmo código”, acrescenta.  

 

“De uma forma bem abstrata, não sobre o caso específico de Mário Cravo, qualquer obra que é vendida, quando o autor da obra vende, está transferindo os direitos autorais dele – não permanentemente, porque direito permanente autoral não é transferido. A pessoa tem o direito de ter aquele bem que pagou pelos direitos autorais e também tem os direitos patrimoniais, que são coisas diferentes. Na lei de 1973 dizia-se que quando um autor de uma obra vende um bem, uma obra, ele está transferindo também os direitos patrimoniais e de reprodução. A de 1998 não permite, tem que ser por escrito e por expresso”, explica a advogada, sugerindo, de forma geral, sem ter acesso ao contrato original e demais documentos, que o caso é passível de ser interpretado tanto a favor da prefeitura, quanto do herdeiro. “De forma abstrata, a lei vigente condiciona a reprodução da obra à autorização do autor. Então, se for entendida que a lei que deve viger sobre esse contrato, supondo que ele [Mário Cravo] fez alguma atualização do contrato na última restauração, precisa [de autorização], porque o artigo 29 da lei de direitos autorais diz que a reprodução total ou parcial de uma obra depende de autorização do autor, ou da falta do autor, da família”, pontua. 

 

Como afirmou a advogada, o caso não é simples e, apesar do ultimato do prefeito ACM Neto, não se sabe se o imbróglio terá mesmo um desfecho em breve ou se seguirá na Justiça por mais tempo.

Fonte: Bahia Notícias

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